segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O que peço...

Mas hoje o que eu peço ao inominável é o abandono de mim. 
O eu me centraliza, me ilha, e me continentiza, e me fronteiriza. Se eu puder quebrar esses limites a modo de jarra espatifada, imagino que me liberto da prisão do eu. O umbigo de mim precisa ser cortado. Se eu me tornar ar, fogo, terra e água; se eu me vir nesses elementos, serei menos eu a me desafiar. Serei mais. 
Que venha o abandono de mim. O menos, o ponderável, o limítrofe da existência me projeta, deve me projetar, para o imenso. Mas não dou conta disso. Pro meu bem.

domingo, 28 de agosto de 2011

a face do tempo

Meu tempo me olha com sua face redonda. Mas eu só vejo sua metade.
Lua sempre no quarto-crescente. O tempo tem dois olhos, mas só vejo o squerdo (há pessoas que só veem o direito). A outra metade me é negada. Será sempre assim. Pro meu bem. A outra metade me é obscurecida, velada que só.
Ai de mim se conseguisse tirar esse véu do tempo e o contemplasse em 360 graus. Ai de mim e ai do mundo, seu eu tivesse esse poder. O homem contempla o mundo em 180 graus, basta.
Mistério que esconde o monstro em nós.
Ou o monstro das certezas, que é o destino.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Deixa estar...

Deixa estar.
Essa expressão cai tão bem naqueles momentos em que, não conseguindo resolver um problema, diante de nossa incapacidade, bradamos como um suspiro.
Deixa estar.
Expressão rica, mas ainda com sentidos velados. Deixa estar é quase como o abandono do outro, é quando libertamos o outro e ao mesmo tempo nós mesmos. Porque está claro que quando usamos o "deixa estar" queremos que o outro esteja sendo. E se deixamos o outro estar, é porque também nós deixamos de lado os grilhões que nos atavam às ações do outro.
O "deixa estar" é um signo que nos separa da outridade e nos dá consciência de que para ser é necessário deixar estar o mundo. Deixa estar, um dia ainda me liberto do outro que me faz ter consciência de mim. Deixa estar é permitir que o outro vá, sem aniquilá-lo.
É permitir que o outro seja outro para outros. E pronto.

domingo, 14 de agosto de 2011

Zoomitemas I

O mosquito Narciso pousou numa folha orvalhada e ficou reparando sua imagem no espelho. Passou as patinhas na cabeça, balançou a cauda, limpou as antenas. Depois piscou o olho para seu reflexo. Ficou perdidamente apaixonado.

A cobra Orobora dormia enrolada numa pedra redonda. Quando acordou, levou um baita susto: a menos de um palmo de seu nariz havia um bicho sem olho, sem boca, sem ouvido. Num instante, ela deu bote e zas, mordeu a inimiga. Só então percebeu que havia arrancado um pedaço do próprio rabo.

O jabuti Ícaro cismou que queria visitar São Pedro e tocar gaita para o santo. Ficou olhando os pássaros, observando o voo, aprendendo a domar o vento. Com muita calma e obstinação, fez um par de asas com penas do urubu e cera de abelha. Subiu na mais alta montanha e começou a bater as asas. O voo parecia tranquilo, mas o sol não estava de bom humor. O calor foi derretendo a cera e as penas se soltaram aos poucos. Desesperado, o jabuti despencou gritando: "Afasta-te, pedra, senão te esborracho!!!". E a pedra lá, surdinha e imóvel. O jabuti virou caquinhos. Mas sua alma está no céu, tocando gaita para os anjos. 

O joão-de-barro Dédalo era o arquiteto mais famoso da floresta. O rei da ilha de Creta, Minos, estava aflito com o monstro chamado Minotauro, que nasceu querendo morte. O rei contratou o João-de-Barro para fazer uma prisão para o bicho. A ave construiu engenhoso labirinto e pôs o Minotauro lá no meio. Depois voou e lacrou a porta do labirinto. Dizem que o Minotauro nunca mais saiu de lá.

O escaravelho Sísifo, besouro grande e pesado que quase não consegue voar, antigamente era um moço esbelto e de asas enormes e tão potentes que o faziam voar com graça e precisão. Tinha um dos voos mais perfeitos entre os animais alados. Mas o escaravelho era trapaceiro até dizer chega. Enganava todos os viventes. Enganou até a morte. Quando ela veio levá-lo, ele a elogiou, disse estar apaixonado por ela e lhe deu um colar. Mas o colar era, na verdade, uma coleira, e a Morte ficou presa por muito tempo nas patas do escaravelho, como se fosse um cachorrinho. Humilhada, quando a Morte se livrou do besouro, lançou sobre ele um castigo terrível: ele passou a se alimentar de fezes e viveria até o fim dos dias empurrando uma grande pedra de cocô para todo lado. Todo mundo o conhece por Rola-bosta.