quinta-feira, 25 de novembro de 2010

dando um tempo

- Preciso de um tempo...
- Por quê?
- Sinto que você me consome...
- Como assim? Você não gosta mais de mim?
- Não, quer dizer, muito pelo contrário: estou cada vez mais apegado a você.
- Então não te entendo...
- É que...você me sufoca, e amor só pode ser amor quando não há amarras.
- Mas você sempre teve liberdade na nossa relação. É sempre você quem decide se quer me ver. Nunca sou eu quem te procura.
- Sei disso. Mas você tem um poder, um feitiço, uma atração irresistível. Esse é teu veneno.
- Mas nunca te privei de liberdade. Isso você não pode afirmar!
- O problema é que você é como uma droga poderosa. Você consegue em doses homeopáticas prender qualquer um. E ainda consegue sair ilesa de tudo, como se fosse a vítima.
- Mas na nossa relação eu sou sempre aquela que te espera, que te instrui, que te abre para o mundo, que te mostra inúmeras possibilidades.
- Por isso mesmo preciso dar um tempo. Você me consome, me incendeia, me cega de tanta abertura. É paradoxo dizer isso, mas sua liberdade me aprisiona, como um inseto noturno rodeando lâmpada acesa.
- Preciso mesmo ficar longe de você, para me desapegar dessa falsa ilusão e liberdade que você me proporciona. Desculpe, é só por um tempo.
- O tempo não me atinge, meu caro, estou imune a ele. Mas... como te disse, a decisão é sempre sua.
- Adeus.
O rapaz desligou a internet. Não sabia se conseguiria viver longe da web, mas precisava respirar coisas concretas.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

José e Pilar

De repente os ateus nos dizem mais de Deus que os profundamente devotos. Falam da única e irremediável certeza: a morte. Não ficam se vangloariando com um céu incerto, com uma eternidade improvável, com uma desejável ressurreição do corpo ou da alma. Os ateus são suficientemente certos das limitações humanas. E, por isso, vivem sua humanidade procurando contribuir para despertar os homens de sua cegueira ou, pelo menos, fazê-los mais questionadores.

Saí da sessão do filme José e Pilar agradecendo a Deus pelo Saramago. E engrandecendo a Pilar, por sua bravura, sua dedicação a esse homem, até a morte dele e para além da morte, na fundação que o ajudou a fundar. O filme-documentário mostra a vida exilada na ilha espanhola de Lanzarote e as intensas viagens ao redor do mundo, para conferências, homenagens, lançamentos. Sobretudo o filme é sobre o amor tão incerto por ser tardio e tão certo por ser amor desprendido. Me perguntei: "Se Saramago tivesse recusado tanto convite e tanta viagem, a clausura teria contribuído para mais livros?". E o que queria Pilar  ao abandonar sua carreira jornalística para devotar-se religiosamente a um homem trinta anos mais velho? A agonia do velho homem à beira da morte e preocupado com mais um romance (A viagem do elefante, na verdade seu penúltimo) nos faz mergulhar nesse estado agônico, preocupados também nós com o fim antes do fim.

Saramago ensina aquilo que é o fundamento de toda religião: o amor, único sentimento capaz de redimir, de vencer a morte, como diz mesmo o autor na dedicatória do livro A viagem do elefante: "A Pilar, que não deixou que eu morresse". Descanso eterno às cinzas deste grande autor, embaixo de uma pedra, do jardim, de uma casa, numa ilha da Espanha.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Um monge

Houve um tempo em que pensava em exercer o sacerdócio. Dentro de mim ardia um lume. Até andei achando que ouvia a voz de Deus me dizendo: "Vai, eu te envio! Vai ser meu profeta!". E aquilo queimava, me inquietava. Era uma chama que me consumia, que latejava e me enchia de um prazer que não posso comparar a nenhum outro prazer que já senti. Mas suspeitava que o povo não desejasse profetas, guias, pastores... Tudo o que uma ovelha desgarrada quer é estar livre do cajado do pastor. Eu mesmo não queria saber de nenhum profeta me dizendo coisas que, por serem verdadeiras, eu nunca queria ouvir.

O tempo passou. O sacerdote que eu seria um dia morreu antes de nascer. Morreu para mais nunca. Pensando bem, se um dia me for permitido abandonar tudo por uma causa religiosa, que seja para ser um monge solitário, cujo monastério se equilibra no cimo de uma rocha também solitária. Ali pregaria ao vento, falaria aos passarinhos, converteria os pingos da chuva, entoaria melodias ao sol e à lua e vociferaria contra os raios e os trovões. Isolado, longe da humanidade, buscaria a salvadora lucidez e gastaria meus dias num exercício cuja única finalidade seria o abandono de mim.

Os homens não precisam de profetas. Os homens não ouvem outra voz que não seja a sua própria. Eu, monge, no meu monastério, rezaria: "Ó, Deus, que os homens aprendamos a silenciar. Que aprendamos que menos é mais. Ensina-nos a linguagem do silêncio profundo! " E agradeceria por ter tido a oportunidade de ser monge, e viver no cume da rocha, longe dos homens e de suas tão desgastadas vontades. Amém!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Não é...

Deixa só te dizer uma coisa: não confunda alhos com bugalhos, nem caramelada com cara melada. O que escrevo aqui não é minha vida. Não é biografia, ainda que pareça. Não é o que sinto, ainda que eu sinta. Não é o que eu penso, ainda que eu pense.
Não é! Pronto! Acabou.
Favor não confundir exercícios de ficção com a matéria do real. Se escrevo sobre tristeza, a última coisa que eu quero é que você pense que estou numa fossa. Se escrevo sobre alegria, não desejo que o leitor me imagine inebriado de felicidade. É tudo falso, po! É tudo fingimento. Isso aqui é um laboratório de fingimento.
Não confunda, pois, ficção com fricção. É um tudo-nada, entende? É um nada-tudo que me tranquiliza diante banalidade do real e me projeta para outra dimensão, talvez, um entrelugar. Só isso. Mas não sou eu, não é o que vivi, não é o que vi. É outra coisa. E pode não ser literatura, mas certamente não é real.
Passar bem.
(crédito de imagem: M.C. Escher)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

desejos

Hoje acordei com um desejo novo. Um desejo insólito. Um desejo que não sei se tem cacife para ser realizável. Era um desejo de grávida. Um entojo. Um engulho me assomando. Uma cólica no inconsciente me atiçando o juízo.
Desejo só é bom quando tem um quê de realização. Mesmo que leve anos ou décadas para ser concretizado. O meu desejo, porém, é inimigo do tempo. Quanto mais o tempo passa, mais ele ganha dimensões de nada. Razão inversamente proporcional. Mas é que o tempo nunca anda para trás. E meu desejo tem olhos no que já foi, não tem cara de futuro, tem olhos atrás da cabeça. 
Acordei com sede. A boca seca. Fui até a geladeira, peguei a jarra, bebi toda a água. E a sede não cessou.  Fiquei confuso e intrigado. Então eu não sabia mais nem traduzir minhas ausências?!
Foi então que me olhei no espelho. E a sede se mostrou em toda sua plenitude. Era a sede da juventude. Onde eu perdera a fonte?

(crédito da imagem: A persistência da memória, Dali)

sábado, 6 de novembro de 2010

sobre inspiração

Hoje estou sem um pingo de inspiração. Eu inspiro, inspiro, inspiro... e na expiração só sai vento.

Nenhuma palavra digna de eternidade, nenhum verso digno de nota, nenhuma ideia aprovável. Parece que estou anestesiado, flutuando num vácuo, cheio de um incômodo vazio. Bem feito: quem me mandou confiar em inspiração? Quem me mandou crer que poesia é filha dos céus? Quem me mandou acreditar que escrever é coisa transcendental?

Pronto. Que este post represente a poesia que não veio, a poesia que nunca virá,  a poesia do pretérito imperfeito. O pretérito inexistente. Que essa poesia lave a alma dos sedentos da verdadeira poesia. Que ela fecunde o solo do homem faminto. Que ela diga tudo sobre silêncios no seu silêncio infinito. Que ela, enfim, convide o homem a ser ausência, pois agora que tudo é barulho, e queremos nos mostrar, e queremos ser vistos, e queremos aparecer... agora é hora dos imostráveis.

Por favor, me deixa nutrir em paz minha despoesia !

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

CONFIANÇA

Fui dormir pensando na sujeirada que tomou conta deste país.
Acordei de alma lavada.
Não sei mais se quero ir para o céu.