quarta-feira, 23 de maio de 2012

desretrato

Eu não sou o que você pensa que sou. Eu não sou o que eu penso que sou. Nem sei o que penso de mim mais. Então, não vai adiantar me descrever porque o máximo que vou conseguir é uma imagem tosca, desfocada, borrada a carvão, na pretensão de um autorretrato. E esse "EU" egocêntrico que insiste em me atravessar. Esse pobre "eu" não dá conta de mim, de tão insosso. Esse "eu" tenta se passar por mim por inteiro, me dilacerando a essência que penso haver no esconso, em algum desvão de mim. Uma imagem capturada em lente imprecisa. O que peço, então, é para que você não me tente enquandrar, rotular. Não tente fazer de mim um retrato purificado por sua pretensa lente, porque, talvez, o que consiga, é fabricar um espantalho.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

sobre destino e desembesto

O destino é meio desatinado. Ele vem aos trancos, feito carreta cheia de bois que desce ladeira, sem freios. E sai da frente quem puder, quem tiver ouvido para ouvir e olhos para ver. E sai da frente pro desembesto do mundo, sem rumo, ribanceira abaixo. A manada engaiolada sobre rodas se abala, indefesa, sem noção do perigo. O perigo engaiolado é o senhor do caminho. Desatino, destino. Tino. E o rolo grande ensurdecedor na ladeira do tempo. Carreta de bois, poeira, tudo cego, tudo preso e tudo solto. Salve-se quem puder.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

o outro

E quando eu falo aqui, já não sou eu quem fala. É a voz de outro que fica impressa. Digo isto porque meu exercício diário de ser outros pode ser mal interpretado. Quem sabe essa voz feita de palavras, sem corpo, não é um pouco do muito que eu sou, ou que fui, ou que ainda serei?! Vai saber! Mas o que quero é que não me levem a sério. Riam de mim, entrem no jogo; ou vociferem contra essa voz que me toma. É o outro, não eu, quem lhes fala. É o outro, não eu, quem lhes azucrina e tenta a todo instante dar socos no estômago. É que acordo pra dentro, como beber água, entendem? Acordo pra dentro, para deixar que o outro surja. Ele é bem mais corajoso do que eu. Eu nem consigo ser eu mesmo. Acho que ninguem consegue. Por isso, mil vezes tento me retratar, e mil vezes fracasso. Mas esse fracasso não me torna um ser indigno. É no fracasso, feito Sísifo, que percebo meus limites. O corpo limita-se, enquanto a alma não tem fronteira. A geografia da alma não aniquila meus passos. Ainda bem! mas, por favor, não sou eu quem escreve isto. É o outro.