terça-feira, 26 de maio de 2009

Nada é poesia; tudo é poesia.


- poesia tu me amas?
- aferventa minhas palavras
- poesia tu me tramas?
- alimenta minhas palavras
- poesia tu me dramas?
- adormenta minhas palavras
(Augusto Cassas, Salmo Apascentador, Deus Mix, Imago)

De repente olho pro piso sintecado, procurando tornar meu olhar disforme, para o germinar do poema. E quando percebo já estou ruminando versos. As linhas marrons da madeira preenchem o chão do quarto. Madeira morta e tão útil. Que graça há em ser útil depois de morto? Ah! Há sim! Órgãos doados, pulsando, vivos, num outro corpo. E agora percebo que a poesia entrou no hospital, lado a lado com a morte.
Tudo serve para a poesia; nada serve para a poesia. Os chinelos no canto do quarto, velhos, sujos, à espera dos meus pés, me inspiram. Como o amigo cão, parecem implorar por um passeio. Se pudessem, andariam sozinhos. Talvez seguissem por outros caminhos, veredas que eu não teria jamais coragem de percorrer. No entanto, submissos, jazem imóveis, à minha espera, no canto. O silêncio dos meus calçados toca profundamente minha alma.
Tudo cabe numa poesia; nada cabe na poesia. Esse quarto é tão grande, tão grande, e os papéis o tomam, o invadem, numa desordem que retrata muito bem meu cotidiano e reflete meu interior. Onde está aquela anotação tão importante que fiz a pouco? Jamais encontrarei o endereço daquele sebo anotado num pedaço pequeno de papel. Janelas se abrem e os papéis ficam eufóricos, cheios de malícia. Querem flutuar do oitavo andar e me deixar envergonhado e aflito.
Qual a matéria da poesia mesmo? O tudo e o nada; o tudo no nada.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

QUE EU SEJA...


Que eu seja ponte. Uma ponte feita do material mais firme para suportar o peso da vida. Uma ponte serena a serviço da unidade. Uma ponte ligando caminhos e desfazendo abismos. Uma ponte que, na sua missão de ser caminho sobre a água, age silenciosamente, ensinando o valor do silêncio. Uma ponte que avisa ao caminheiro que as águas sob si também merecem respeito.
Que eu seja água. Água transparente a ensinar o valor da integridade. Água mansa e calma, sem pressa, percorrendo o curso, sem ânsia de chegar ao oceano. Água revolta também, para mostrar aos barcos que em mim navegam o preço da conquista. Água benfazeja, alimentando de esperança outras vidas. Água generosa, a refletir duplamente céu e terra, mostrando que meu corpo é a morada de outros mundos.
Que eu seja um barco. Um barco humilde, porém firme, com vela sempre hasteada para receber os ventos imprevisíveis. Um barco que se deixa singrar na calmaria, sabendo esperar; e que não se abala nas tormentas.

Que eu seja, enfim!

sábado, 9 de maio de 2009

Oração para quem ainda crê no homem


Da violência cotidiana, livrai-nos, Senhor. De toda violência camuflada, que vem em conta-gotas, livrai-nos, Senhor. Da cultura da violência instituída, ingerida, vomitada, livrai-nos, Senhor.
Do fascínio que o mal promove, afastai-nos, Senhor. Do desejo amargo de vingança, afastai-nos, Senhor. Da droga da omissão, que é a pior droga, afastai-nos, Senhor.
Da estética da crueldade, libertai-nos, Senhor. Da estética da violência, libertai-nos, Senhor. Da estética da barbárie, libertai-nos, Senhor. Do bélico tranformado em belo, libertai-nos, Senhor.
Do pânico que gera prisão, curai-nos, Senhor. Da dor gerada na opressão, curai-nos, Senhor. Do rancor que não pode ser perdão, curai-nos, Senhor.
Porque não somos mais capazes de acreditar no amor, piedade, Senhor. Porque nos alimentamos de vingança, piedade, Senhor. Porque não sabemos promover Justiça, piedade, Senhor.
E se por acaso não mais acreditarmos em qualquer vestígio da divindade porque não mais acreditamos na humanidade, ainda assim, ajuda-nos, Senhor!

sexta-feira, 1 de maio de 2009

PASTORADOR DE PALAVRAS

(Dedico este texto ao poeta Manoel de Barros)

Quando criança, o menino gostava mais era de brincar com palavras soltas. Ele vivia fabricando ventos no ouvido imaginário das coisas. Adorava quebrar palavras e enterrá-las para ver ser nascia um pé de palavras. Nas brincadeiras, o menino queria que elas dissessem a ele de que modo deveriam caber num papel branquinho.
A mãe do garoto o mandava botar sentido nos porcos, e ele ficava imaginando como seria difícil educar os suínos. É que botar sentido pra ele não significava olhar os bichos ou pastorá-los. As palavras eram tagarelas no seu pensamento, mas no papel jaziam numa mudez irritante. Também, o pensamento dele era bem colorido, dava até pra sentir o cheiro do pensamento e o gosto das imagens; mas o papel era branco demais, ofuscava os olhos dele e afugentava nomes, verbos, qualidades...
Então, ele falava, falava...depois cantava, cantaaaava...e pensava. Como esse garoto pensava!!! Não sabia, mas estava cultivando poemas na terra fértil da memória. Hoje, o menino está crescido. E o que escreve são as vozes das palavras arcaicas do tempo de sua infância. Muitas delas entraram nos seus ouvidos, vindas da sua mãe e dos outros velhos, se apoderaram da cabecinha dele e cultivaram pacientemente no seu ego o canteiro das suas ideias.
Quando está sozinho, o homem que um dia foi menino nunca está sozinho. Elas, as palavras, surgem de algum canto escondidinho e começam a tagarelar, e ele relembra a primeira profissão: pastor, pastorador de palavras.

Menino perguntadeiro




















- Será que o olho da rua vê tudo o que passa nela?
- Se a terra é redonda, por que procuramos os quatro cantos do mundo?
- O braço do rio disputa quebra de braço com quem?
- A boca da noite tem dentes ou é banguela?
- Quanto calça o pé-de-vento?
- O dedo de prosa usa anel?
- A asa da xícara voa?
- Por que o bule tem bico e não é pássaro?
- A batata da perna é doce?
- As maçãs do rosto amadurecem?
- Por que a porca do parafuso não dá cria?
- A flor da pele desabrocha?
- Cadê os pais da menina dos olhos?
- As pernas da mesa não andam, por quê?