segunda-feira, 29 de março de 2010

Sem cabimento

Ai que vontade de contar uma história sem cabimento, igual àqueles sonhos que sempre tive, sem pé nem cabeça. Uma historinha boba, que tenha suspense, onde alguém, perambulando por ruas tortas e cheias de neblina, de repente se depare com... com... consigo mesmo, transformado em outro. E ambos se espantem, e fujam um do outro. E de repente o chão ceda e engula os dois e eles caiam no topo de uma montanha nevada.
Ai que vontade de contar uma história tão sem cabimento que ela não caiba nela mesma. Uma história tão plausivelmente mentirosa, que faça o leitor ir até o final para chegar num precipício. Uma história onde o tempo vira escravo do homem, e seja seu objeto particular...Uma história tão sem cabimento que exploda em mil pedacinhos os personagens, os cenários e o enredo.
E a trama seja tão bem tramada que os fios se entramelem e virem labirinto de onde leitor nenhum jamais se liberte.
Bem feito!
A história sem cabimento está chegando, sinto que está...
Passou a diaba!
Vai-te, cretina... Vai ser aprisionada por um escriptor.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Arte menor!?


Isso eu acho bacana. Um escultor minimalista inglês. Simplesmente esculpe em grão de areia. Observe a igreja real e a escultura no buraco de...uma agulha. Fantástico, não é? Segundo o jornal Daily Mail, o autor se sentia infeliz na escola e começou a fazer casas para formigas. "Minha mãe me disse que quanto menor fosse o tamanho da minha obra maior seria o meu nome" disse Willard ao jornal.
Me lembrei de uma frase de Edmond Jabes: "Toda memória do mundo jaz num grão de areia". É isso aí.

(Família Obama, em grão de areia)
(O pensador, num alfinete)

castelos de areia

Castelos de areia, gigantes de laranja e limões, carrinhos de manteiga, cavalos de gelo. A arte não sabe mais o que é matéria-prima?
Foi-se o tempo em que arte era feita pra durar. Tudo é passageiro, fugaz. E, apesar de achar bonito, tenho meus medos. Acho que estamos tão apegados ao agora que nem damos conta de que o futuro pode ser gestado.
Nosso presente é efêmero. Escorre por nossos dedos. Não se prende a nada. Sempre foi assim. Mas bolamos um jeito de fazer com que o momento fosse capturado. A arte.
O que fazer, porém, quando a arte é também passageira, e apodrece, e desmancha, e apaga-se facilmente?
Será que a fundação de nossas vidas está alicerçada sobre a areia?

quarta-feira, 24 de março de 2010

Máximas de um mínimo

O texto "Máximas de um mínimo" foi pensado para ser um livrinho de tirinhas. Fiz, guardei, deixei de lado porque não encontrei nenhum cartunista ou quadrinista interessado.
Outro dia o enviei ao Cronópios. O Pipol, profissionalíssimo e multiartista, publicou. É a história de uma bactéria habitante da flora intestinal de um poeta. Ela é uma leitora compulsiva. Devora tudo. Por favor, se tiver um tempinho, vai lá e dá uma lida.
O link é esse aqui: Máximas de um mínimo.

domingo, 21 de março de 2010

Deus é Super-Herói?


Uma coisa intrigava o menino.
Toda vez que a mãe o levava até a igreja, ele fitava aquele homem quase nu estendido numa cruz, com uma cara de dor. Os grandes, todos de joelhos, diante daquele homem sofrendo. Uma vez. o menino custou a ficar de joelhos.
- Ajoelha, filho! – disse a mãe.
- Por que, mãe?
- Para adorar Jesus pregado na cruz...
- Por que ele tem que ficar pregado lá?
- Para nos salvar, filho... – a mãe respondeu num cochicho, para não incomodar a oração dos outros.
- Nos salvar?
- Sim, ele morreu pra que a gente pudesse viver. Mas ele é Deus, viu...
- E Deus morre?
- Ele morreu, mas depois ficou vivo novamente.
- Mas todo Deus não é imorrível, mãe? Tipo superman, homem-aranha, ex-man...
A mãe riu baixinho.
- Esse é um Deus especial, filho. Porque é verdadeiro.
- E os outros são falsos?
- Bem, ahan...Foram inventados...
O menino não ficou convencido, mas ajoelhou. Seus olhos miraram os olhos quase fechados daquele homem na cruz. Não era um super-herói que estava ali, definitivamente. Era o Deus da mãe do menino. Um Deus fraquinho... O menino se pôs a pensar alto.
- Mãe...
- Que foi?
- Se esse Deus fosse o Superman ele voava bem forte em volta da Terra e não deixava ser preso. Se fosse o Homem-aranha ele ia jogar os bandidos na teia e saía na boa. E se fosse um Ex-man podia usar seus superpoderes para ficar livre dos bandidos.
- Mas, esse Deus tinha que morrer pra provar ao mundo que era Deus.
- E ele não podia provar ficando vivinho? Igual os super-heróis?
A mãe ficou bestificada com aquela pergunta.
- Jesus, esse menino diz cada coisa...
(A ilustra desse post eu encontrei no site
http://www.dialbforblog.com/archives/190/ .
Vale a pena conferir o texto do autor. )

sábado, 20 de março de 2010

ETERNAS INIMIGAS

Cena 1. Zumbido de asas. Rua movimentada de cidade grande. Uma barata gorda voa tranquilamente pelas ruas da metrópole. Metrópole é lugar de barata? Quem disse que não?! Ela faz seus voos matinais, quer talvez perder peso. Voa pra cima, voa pra baixo. Voa prum lado, voa pra outro.
Cena 2. Uma mulher chique, nem alta nem baixa, magrinha, com cara de menina brincalhona, sai da loja cheia de compras. Direge-se ao carro, abre a porta, coloca as coisas, entra... Liga, dá a partida e sai tranquilamente, está feliz. Nada melhor que acordar num dia de sol e ir às compras. Sente-se em estado pleno de calma. Comprar é terapia, assim como pintar, desenhar... a mulher é artista.
Cena 3. Encontro de duas inimigas. Quem cruza o caminho de quem? De repente... vumpt! Splash! A barata se joga contra o vidro dianteiro do carro. Os olhos azuis da mulher percebem os olhinhos esbugalhados da barata que encara a motorista com um certo desprezo. Raiva, ódio, medo, pânico... nas duas. Parece uma luta de Matrix. Câmera lenta: A mulher freia, cerra os punhos. A barata de pé no parabrisa, ergue os bracinhos e com uma mão convida a humana para a luta.
Cena 4. Do lado de dentro, a mulher se contorce toda de nojo daquele inseto asqueroso. Do lado de fora, a barata, tonta da pancada, fita melhor a mulher e tem náusea. Não suporta ver uma humana sentir nojo dela. A mulher vê a barata com os bracinhos na cintura, desafiando-a e gritando fininho. Pena que não ouve nada, mas a barata está vermelha de raiva e grita: “Ui, bicha, ainda me orgulho!” dá um voo e some.
Cena 5. A mulher segue o percurso, e então lembra-se de olhar para o lado. A janela está entreaberta. E quem ela vê voando ao lado? A baratinha insistente. Desesperada, a mulher fecha o vidro. Não quer ver aquele bicho ali dentro. “Por que Deus fez a barata?” resmunga. E lá do banco traseiro, tentando arrumar a asinha esquerda que amassou na entrada, antes de o vidro ser fechado completamente, a baratinha pensa: “Por que o criador foi fazer a mulher?”.
Cena 6. A mulher chega em casa e, ao apanhar as compras no banco traseiro do carro, descobre a barata. Grito de ódio e desespero! A baratinha, já bem descansada após a carona da inimiga, levanta voo e sai pela janela, rindo e pensando: “Coitada, e é esse ser capaz de povoar a terra? Com esse medo todo, será que todos os que nascem dela herdam tal fraqueza? Que Deus tenha piedade dos homens!”

sexta-feira, 19 de março de 2010

São José

Dia do padroeiro. Quando o sol vira uma bola de sangue e mancha o céu do entardecer, as pessoas caminham pelas ruas íngremes da cidade. O sino da igrejinha bate, avisando que é hora da procissão.
O andor vai à frente, e a romaria dos esperançosos principia. Um rio de gente passa pelas ruas estreitas e tortuosas propagando-se em ondas de fé. E nos becos e esquinas os afluentes desembocam no cordão humano.
O sol já se foi, e as velas tornam o momento mais sublime. cheiro de luz, cheiro de flores, cheiro de incenso fumegante: os aromas se fundem como oferenda e elevam-se aos céus.
Cidadezinha das pedras, tão pequena...Tão absurdamente repleta de enlevos e tão teimosamente sagrada... Vai seguindo o percurso enquanto professa a ladainha de todos os santos, de todos os anjos, de todos os homens, de todos os dias.
Junto ao santo estão Raimundo e Maria, Pedro e João, Miguel e Isabel, Cosme e Damião. São mártires diários de uma sitema desumano. Seguem ecoando a música dos anjos: "Glória a Deus nas alturas..." E sua oração transforma a cidade num solo sagrado: o próprio céu de glória.
(Esta igreja é a matriz de São José de Ribamar, no Maranhão)

sexta-feira, 12 de março de 2010

No rio de Chronos

Roda de leitura. Todo mês acontece. Cada aluno lê um livro e conta detalhes. Na última sessão, uma aluna disparou:  "Professor, da próxima vez não vou mais escolher crônicas para ler, porque elas não tem final, e fico perdida, com a sensação de algo inacabado. Vou escolher uma história com começo, meio e fim, pronto!".
Mas então o que é uma crônica? Que tipo de gênero é esse que desperta fascínio por ser um texto pequeno e ao mesmo tempo repulsa, por não ter uma linearidade? Para que então homenagearam o deus Chronos com esse gênero tão obscuro? Todo texto tem começo, meio e fim, sim, mas na crônica, a narrativa pode simplesmente ser jogada por aí, ao vento, e, do mesmo jeito, terminar. Por isso, fatos do cotidiano, tão insignificantes por vezes, servem como matéria prima para o cronista. O cronista é aquele que espreita a pequenez do momento e torna tudo grande. Não é a flor que interessa a ele, mas o espinho; não é a chuva que ele focaliza, mas a gota de um quase imperceptível orvalho; não é o sol que ele adora no texto, mas um raio pálido, coado de uma fresta do telhado... Não são as atitudes e sentimentos mais visíveis, e sim tudo o que possa não ser notado. O obscuro iluminando. O escuro lúcido.
Aquela aluna descobriu, na sua irritação com a crônica, a essência desse ato: cronicar é trazer às vistas do homem as coisas mais ínfimas e cobrar dele a percepção de ver além delas. É dar o anzol e o rio esperando que o leitor pesque os melhores peixes com a leitura.

Quando "demorou" significa "já é" ou: singularidades de nossa língua camaleônica

Uma enxurrada de gírias invade as ruas da metrópole igual às chuvas torrenciais de março. Ficam um pouco, lavam a língua dos falantes e depois vão embora. São chuvas passageiras, mas que deixam muito rastro. Quem não se adequa às tempestades, pode morrer na praia. Gosto de pensar na (in)utilidade desses pingos grossos. E é isso que vou fazer: quem cai na chuva é pra se molhar mesmo...

- Demorou, ou melhor, imitando a prosódia: demorô - esse pingo d'água já está na boca do povo há bastante tempo, e parece querer inundar os dicionários. Quem diz "demorou" na verdade está querendo dizer o contrário, ou seja: não demorou nada, tá confirmadíssimo o lance. Engraçado isso, irônico até, usar uma palavra pra significar justamente seu contrário. Demorou tem antônimo?

- Já é! - essa frase minúscula pretende ser uma confirmação também. É o mesmo que: "concordo, tá fechado, marcado"... é uma espécie de sinônimo de demorou. O verbo tá no presente, mas se está querendo confirmar algo que ainda vem a ser. É uma forma de trazer o futuro para o presente.
- Fui!!! - quem diz isso com certeza ainda não foi, mas está demonstrando pressa para fazê-lo.
- Qual é? ou melhor, coé - é o mesmo que perguntar como vai, mas não é preciso responder. Vale mais como um elemento de conação, ou seja, é só pra estabelecer uma conexão com o outro, iniciando um diálogo. Então coé significa menos um como vai que um simples oi
Outro dia comento sobre mais termos. Quem sabe eu não conte um diálogo super-engraçado de uma senhora com seu neto adolescente. Ambos falam em português, mas não há a mínima possibilidade de comunicação. Como a língua tem um poder camaleônico, não é?
Então...demorou, já é, fui!!!!

quarta-feira, 3 de março de 2010

EU! EU?

"Você tem certeza que você é você?"
"Como assim? Eu tenho certeza que eu não sou você."
Ouvi esse diálogo confuso outro dia, na rua, entre duas garotas. Não pude parar para ouvi-las e saber como terminou esse embate filosófico. Sim, porque elas estavam tocando na questão mais desafiadora para a humanidade: "Quem sou eu?". Pergunta difícil que a garota respondeu jogando toda sua existência para a relação com a outra. "Eu sei que não sou você" soa como "não tenho certeza de mim, tenho certeza de não ser o outro". Tenho certeza que o outro não sou eu. Tenho certeza que o outro é o outro e eu... Bem, eu procuro, desde que me notei por gente, saber o que compete ao meu eu, o que faz de mim o meu eu, o que é próprio de mim. Tenho certeza que caí numa enrascada, porque o eu em mim é muitos, nem sempre o mesmo que me preenche. O eu de mim quer ser o tempo todo nós. Nesses nós me perco, embaraço-me, porque não sei ser eu.
E porque o eu em mim é demasiadamente grande para minha consciência é que não sei.
Não saber encerra uma questão.

segunda-feira, 1 de março de 2010

VOZINHAS E VOZONA

Existem vozinhas e vozonas. Qual é a sua?


A vó da Maria passa o dia em sua varanda
Ela borda uma toalha que não tem fim, não termina.
Minha vó vive falando que o negócio dela é outro:
Saltar de pára-quedas lá do alto da colina.

A vó do Estevão fica toda tarde no escritório
Toma chá, come bolacha, diverte-se com o baralho.
Minha vó é alpinista, não tem noção do perigo.
Escala alta montanha e não quer cortar atalho.

A vó da Joana gosta de se entreter na cozinha
Faz doce em compota, bala, biscoitos, almoço e janta.
Minha vó come é asfalto na sua moto irada
Ou então come poeira pilotando sua jamanta.

A vó do Igor passeia toda manhã no jardim
Colhe rosas e gerânios para enfeitar a sala.
Minha vó cultiva planta que mais parece animal
Planta que come inseto, e odor de pum exala.

A vó do João adora conversar muita lorota,
Contar causos pras amigas e jogar conversa fora.
Minha vó gosta de vibe, de zoar a molecada.
Faz rapel e diz ainda que sua hora é agora.

A vó da Lilica bota um vinil na vitrolinha
E chora ao lembrar do tempo de namoro no portão.
Minha vó adora rock, reavy metal na balada
Passar horas numa pista é a sua curtição.

A vó da Cida se encanta com histórias de princesas
Que sonham com belos jovens na torre dos seus castelos.
Minha vó ama vampiros, sangue, gritos de horror.
Diz que sempre quis ser bruxa pra voar num escaravelho.

A vó do Pedro tem medo de duende e assombração
Tem pavor de gato preto, de escada e cemitério.
Minha vó caça fantasmas, é amiga dos felinos.
Diz que a vida é mais intensa com arrepio e mistério.

A vó da Ana, na praia, fica deitada na areia
embaixo do guarda-sol, lê um livro, bate papo.
Minha vó adora o mar, com sua prancha cor-de-rosa
Encara ondas iradas, bota os surfistas no saco.

A vó do Chico, nas férias, quer descansar na fazenda
Passa o dia numa rede ou então fazendo renda.
Pois minha vó leva a tropa para aventuras sinistras
Já fomos ao Pantanal, ver jacaré, onça e ema.

A vó da Eva adora a cadeira de balanço
Pra cá, pra lá, ela fica, lembrando suas memórias.
Minha vó tem um desejo: quer ser uma astronauta
Vai pilotar um foguete e entrar para a História.

A vó do Tiago ama brincar com o neto no parque
E dão comida aos pombos ali perto numa praça.
Minha vó gosta de farra, adrenalina na veia.
Sela o cavalo Azulão, mete espora e manda brasa.

A vó da Marina curte ver comédia na TV
Fica o dia gargalhando com os programas de piadas.
Minha vó é a piada. Faz graça sem se cansar
Vai ao circo e até o palhaço ri da sua macacada.

Minha vó é uma vozona. A melhor vó desse mundo.
Mas ela disse que isso é questão de opinião.
Uma vó é sempre vó, duas vezes mãe da gente
Todas as vós tem seu charme. Só basta prestar atenção.

(Cláudio Rodrigues, 2010, todos os direitos reservados)