domingo, 29 de abril de 2012

autorretrato

Sou um pouco mais alto que as asas de um pardal e bem menor que as garras do condor. Sou mais leve que um grama de ventania e bem mais robusto que o arrependimento. Ou seria o peso de mil rinocerontes? Minha cor? Tenho os matizes da montanha envolvida pela névoa espessa. Minha pele tem a suavidade de mil sóis sobre o orvalho e a aspereza da couraça de uma manada de rinocerontes. Eles, de novo... Embora embaçado, meu olhar é caleidoscopicamente muscal. Sinto cheiros inexistentes para narinas humanas. Aliás, não possuo narinas, e sim ventas. Tenho me surpreendido com uma atitude insólita: chorar por cada pelo perdido, por cada caspa e cada célula de pele morta que o vento leva. Os ácaros me odeiam. Outro dia, quase me afoguei numa poça de sonhos. Quando acordei, fui ler o destino na borra escura da água do banho, misturada à espuma branca do sabão. Senti que escorro pelo ralo a cada dia. Nascer é desapegar-se daquele conforto primordial. Minha sina é errar pelo que não é útero. Vivo no tempo das acontecências.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

vou te contar

Vou te contar um segredo. Segredo bom, segredo segredável. É isso. Estás preparado? É porque o que te vou anunciar fica só entre a gente, e o vento, e os pássaros, e essa atmosfera cor de fogo de uma tarde que se vai e doa uma noite morna. Estás preparado para o que te vou contar? Só nós partilharemos dessa mensagem, como se fosse pão saído do forno, quente, prestes a explodir nossas narinas; como se fora a cortina do aprtamento vizinho que teima em mostrar o imostrável, e atordoa nosso horizonte. Estás preparado para ser a ostra da minha peróla? Estás suficientemente preparado para seres a boca fechada da noite, engolidora dos astros constelares? Olha lá, heim! Tu serás o único a aninhar o segredo, e apenas na hora propícia esse ovo romperá e permitirá que todas as potestades ruflem no maravilhoso momento. Eu não sei se te devo contar. Porque o íntimo me rejubila, me liquefaz, me plasma. E, definitivamente, eu não queria ser compreendido. Definitivamente, eu não queria nada definitivo. Estás preparado? Então, lá vai...

domingo, 15 de abril de 2012

asa

Dentro do novo, o ovo
Dentro do povo, o ovo
Dentro da casa, a asa
Dentro da brasa, a asa
Dentro da vida, a ida
Dentro da lida, a ida
Um ovo dá um voo
Daí se faz a ida
com asa.

entretanto...

entretanto, o que quero não tem cor, nem cheiro, nem gosto. o que quero não tem aparência, nem altura, nem peso. o que quero, mesmo, não tem forma, nem voz, nem pensamento; não anda, nem voa. ando grávido de uma coisa que não faz sentido nesse mundo, mas me torna digno de mim. e me torna imune aos homens. e me deixa plácido. e enche de vontade. descobri que habito nas frestas da espera e no tempo que não chegou.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

a boneca

Estava comendo uma batata frita num fest food engordiet da vida quando uma família chegou. Pai, mãe e filho de 7 anos, mais ou menos. Pediram aquele lanche feliz que vem com um brinquedinho. O menino cismou que queria a boneca. O pai, disfarçando: "olha o carrinho, filhão. bonito; você vai dirigir um". O menino, insistente: "quero ela, é tão linda, mãe!". O menino começou a gritar que queria a boneca, que era linda, que estava bem vestida, que tinha cebelão... O povo todo de olho na criança. Não teve, jeito, o menino conseguiu sua boneca e o pai terminou dizendo: "está treinando pra ser pegador, meu filhão!". Sei, tá bom.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

paixão

Ontem foi dia do beijo de traição mais famoso dos tempos. Ontem foi dia do jantar mais lembrado dos últimos dois mil anos. Ontem foi dia de um gesto simples e profundamente significativo: um deus que se curva e tira a poeira do pé do humano para que este siga adiante. E hoje é um dia insólito. Sempre o achei assim. Porque parecia covardia de minha parte deixar aquele deus humanado carregando, sozinho, o peso da cruz, e sendo flagelado, e morrendo pelos outros. No entanto, o que mais me instigava era pensar que um pai quis que seu filho único passasse por isso: "vai, meu filho, vai para a Terra, sofrer a dor dos homens. Vai, ser traído. Vai, ser achincalhado. vai morrer em meu nome?" Por que o deus maior não veio, ele mesmo, sofrer tudo isso? incômodo demais para mim isso, sempre foi e é. É assim que age um deus apaixonado? Vai ver paixão é sofrimento maior que amor.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

semana nada santa

Para mim, hoje não é só lava-pés; é também escalda-pés. Meu coelhinho de páscoa está impresso no papel higiênico e tem até cheirinho. Troquei o bacalhau pela sardinha, mais em conta, menos sal. Já estou pensando na minha crucificação, vivendo numa cidade onde preços só disparam. As calopsitas não param de roer os tacos do piso e de gritar feito loucas. E nem falam. Tudo está meio desconexo, nem côncavo, nem convexo, frouxo frouxo, sem costura alguma. Amanhã Cristo vai morrer pela 2012 vez, e o mundo nada de tomar vergonha na cara. No sábado de aleluia, o Judas perde a cabeça e as botas. Quem quiser se livrar do mal, deverá rir um riso diabólico, riso espanta-demo. No domingo, não sei, mas é difícil haver homem ressurecto.

domingo, 1 de abril de 2012

mês difícil

Gosto muito deste abril que começa tão mentiroso (1), depois se entrega ao teatro da Paixão (6,7, 8), tão dolorido, tão humano e tão divino; em seguida, celebra a traição dos inconfidentes (21) e o descobrimento (22) de algo que nunca esteve coberto, o Brasil, culminando no suicídio de quem não devia ter nascido: Adolf Hitler (30). Esse mês é forte demais, humano demais, barroco demais, meu pai!

verdade X mentira

"A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer". Essa máxima de Quintana cria um paradoxo interessante. A mentira é uma verdade. As mentiras que circulam hoje, no dia internacional da mentira, bem podiam tornar-se realidade: punidos todos os corruptos, cura do câncer, Aids e todas as doenças crônicas, piso salarial do professores será igual ao de um deputado, não há mais fome nem sede no mundo, o clima estará estável nos próximos anos, etc., etc. A mentira deste dia já é um anseio de verdade, uma semente, desejo mais desejoso. Mentira, omissão, ocultação de verdade: dá no mesmo? A mentira está sempre grávida da verdade, prenhe. Ai ai ai. Tão bom falar qualquer coisa só pra encher uma postagem, igual compostagem.